Mal o ano começa e o bom pernambucano que se preza só pensa em Carnaval.
Se bem que, o folião raiz passa mesmo os 365 dias contando e esperando a festa de Momo recomeçar e os problemas, por alguns dias, sumirem.
Se as expectativas não são as melhores em alguns pontos da vida, da economia, da política ou qualquer outra, pode ter certeza que, por maior que seja a desventura, ela servirá de sátira durante a folia.
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E este não é um comportamento atual.
Pernambucano adora transformar tudo em Carnaval desde sempre. A prova é tanta que, na década de 1930, uma das figuras mais polêmicas que viveu por aqui acabou virando tema de frevo e até de troça carnavalesca.
O canal Coração da Cidade conta, a partir de agora, a passagem do misterioso Tahra Bey pelo Recife. Uma figura que dividiu opiniões e, apesar de ser escorraçado da capital pernambucana, foi eternizado pela criatividade do seu povo e pelo amor ao Carnaval.
“Um homem para quem a dor é uma opinião”

Essas eram as palavras que descreviam o misterioso Krikor Tahra Kalfayan, ou Tahra Bey, nos anúncios dos jornais em 1933, convidando a população do Recife para conferir suas apresentações de ocultismo, telepatia, hipnotismo, sono latérgico e, principalmente, o faquirismo, que são habilidades supostamente mágicas de andar sobre o fogo, deitar em cama de pregos e engolir espadas.
Porém, o autointitulado Dr. Bey, que anunciava não sentir nenhum tipo de dor, teve muito desconforto ao enfrentar a fúria de opiniões contrárias durante sua estadia em solo pernambucano.
Não se sabe ao certo a origem de Krikor Tahra Kalfayan. Os jornais davam como a Armênia sua pátria-mãe. Apresentações em diversos países da Europa e nos Estados Unidos também apareciam no currículo do faquir.

Enquanto esteve no Recife, era no Cine Teatro Moderno, localizado à época na Praça Joaquim Nabuco, Centro da cidade, que Tahra Bey exibia seus “dons”.
Sempre com sessões lotadas, ele fazia questão da presença de autoridades, jornalistas e médicos para atestarem a veracidade de seus poderes. Essa constatação nunca veio, pois a classe médica insistia em analisar as técnicas do faquir em um local mais apropriado. Ele jamais aceitou.
Mario Mello e as cuecas de couro de Tahra Bey

Mesmo sendo o assunto principal de rodas de conversas por um bom tempo e lotar o Cine Modelo toda semana, Dr. Bey precisou de muito jogo de cintura para lidar com as críticas do influente escritor Mário Mello, o qual dedicou diversas publicações para desmascarar o considerado charlatão.
Em certa ocasião, no Diário de Pernambuco, Mário Mello relatou que Tahra Bey, em Paris, havia sido desmistificado quando descobriram o uso de cuecas de couro para se proteger dos pregos durante o número de faquirismo.

As cuecas de couro de Bey ainda renderiam outras páginas de jornais. Em uma coluna do Jornal Pequeno, em 1933, foi relatado que um telefonema anônimo para a redação informava que Mário Mello havia adquirido uma dúzia de cuecas de couro em uma loja do Centro do Recife.
Se Mário Mello, nas páginas do Diário, estava determinado a acabar com a fama do armênio, o Jornal Pequeno tomava suas dores. De acordo com a coluna “Registos do Dia”, em 1º de julho de 1933, “Mário Mello é o homensinho mais perigoso que anda por estas paragens […] O sr. Tahra Bey foi sua victma mais recente”.
De acordo com a coluna, o faquir estaria sendo hostilizado no Norte do país – para onde foi após sair do Recife – graças às correspondências enviadas por Mello aos jornais do Ceará e Pará.

“Entretanto, o desmoralizado fakir não lhe paga na mesma moeda. Tanto assim que vem lhe mandar, de Belem, todas as suas cuécas de couro”, completa o texto do Jornal Pequeno.
Antes de partir de Pernambuco, Tahra Bey ainda se envolveria em diversos outros escândalos. Uma sucessão de adivinhações desencontradas fizeram, pouco a pouco, as apresentações do faquir perder público, mas ele não deixaria de ser lembrando tão cedo.
Tahra Bey no Carnaval do Recife
O faquir Tahra Bey já não estava no Recife quando, em 1934, foi tema de um frevo-canção para concorrer no Grande Concurso de Músicas Carnavalescas promovido pelo Diário de Pernambuco naquele ano.
De letra e música do compositor Bizarro, a música “Tahra-Bey do Carnaval” dizia assim:
I
Eu sou o Tahra-Bey
Do nosso carnaval
Nos trucs do amor
Sou profissional,
O coração endurecido
faço ficar enternecido.
Faço cantar, também faço chorar,
o meu trabalho é magistral
Refrão
Já sei, já sei
Porque disseram que você é Tahra-Bey
Já sei, já sei
Porque disseram que você é Tahra-Bey
II
Vou ver o teu segredo
que pensas bem guardado,
pois leio o coração
de qualquer namorado,
Por tua causa, oh Colombina
Terei meu curso lá na China
e aqui estou mistério desvendado,
Do teu olhar apaixonado.
III
Eu temo que esta prova
Me traga o grande mal
De ver cair por terra
O meu sonho ideal.
Ah, quem me dera, oh! Colombina,
destes teus lábios de bonina
Ver um sorriso e um SIM ao meu amor
Meu grande amor que é sem igual.
A música Tahra-Bey do Carnaval ficou entre as finalistas, mas não chegou a ser gravada. A grande vitoriosa do concurso foi “É de amargar”, de Capiba.

Pouco se pode afirmar concretamente sobre a passagem do faquir por Pernambuco. A maioria dos relatos encontram-se em antigos jornais. O certo é que Tahra Bey não foi o primeiro nem o último místico a atrair atenção da população pernambucana que sempre soube unir bem duas grandes paixões: o Carnaval e o gosto pela novidade.
Por Manuel Borges
Jornalista matuto que trocou o gosto da cana pelo cheiro do mangue. Adora passear por locais, histórias, cultura, picos/festas/bares, personalidades e humor sempre tendo o Centro, o coração da Cidade do Recife, como tema. Instagram: @manecoborges.
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